Lendas de Auriana: A Lenda das Peregrinas Prateadas
Algumas eras haviam se passado desde o término da Criação. Sob o olhar atento dos Oito Irmãos, os reluzentes Mensageiros da Primavera pouco a pouco difundiam pelo mundo a vida que haveria de preencher toda sua extensão.
Enquanto os primeiros fios de relva se erguiam do solo vazio e os pequenos animais primordiais nadavam pelos vastos oceanos e corriam pelos campos abertos, os deuses caminhavam pelo mundo apreciando atentamente a beleza de seu trabalho. A fim de deixar sua marca para as próximas gerações que dali sairia, eles foram dando seus toques especiais à nova vida, cada qual ao seu jeito, sempre atentos para não desbalancear seu precioso equilíbrio cíclico, dinâmico e perfeito, a base da sustentação do mundo.
Foi então que Solaris veio aos seus filhos, em seu esplendor radiante, para passar a eles uma próxima tarefa divina. Agora com o mundo criado e em desenvolvimento, eles deveriam partir em viagem para todos os cantos da Vastidão, espalhando para o cosmos a mensagem da criação do novo mundo. Auriana haveria de ser uma terra para todos, a terra da paz e do equilíbrio, onde qualquer um haveria de encontrar seu lugar.
Os Criadores sentiram-se inseguros em partir de seu jovem e frágil mundo, mas logo se lembraram do fato de que este havia sido criado para evoluir sozinho, sem a intervenção divina, e as forças supremas de Criação e Destruição haveriam de se equilibrar mutuamente com o passar do tempo. Pediram então a Solaris e Ominus que continuassem a alimentar a Criação com suas forças enquanto não voltassem, que tudo haveria de ficar em ordem.
Com a garantia da segurança de Auriana sempre em mente, eles partiram. Passaram por todos os lugares e espalharam pelas estrelas para quem quisesse ouvir sua mensagem sobre a criação de um novo mundo. Às divindades dos planos existenciais mais distantes eles ensinaram o caminho de chegada e, para os povos curiosos, contaram as lendas de uma terra em que montanhas altas, oceanos profundos e campos verdes coexistiam em harmonia.
Eras depois, eles retornaram para seu mundo, com a sensação de missão cumprida, prontos para esperar quem quer que quisesse a eles se unir para contribuir com sua amada Criação, e ficaram estáticos com o que encontraram.
Todo o ideal de equilíbrio parecia jamais ter sido idealizado. Para cada canto que olhavam os Oito Irmãos só viam o caos. As forças da Criação e Destruição não convergiram para a estabilidade, mas começaram a se contrapor em uma magnitude cada vez maior. O choque constante e cada vez mais intenso de Luz e Escuridão havia tornado a vida praticamente insustentável, e tudo que um dia, antes da grande viagem à Vastidão, florescia com beleza imensurável sob a guarnição dos Criadores, agora caminhava para o colapso iminente.
Os gritos desesperados dos Mensageiros da Primavera ecoavam pelos ventos uivantes sem controle, impotentes perante toda a situação: Todos os seres vivos se matavam e se multiplicavam a um ritmo tão intenso que o ciclo da vida parecia que ia se esfacelar a qualquer instante. O desequilíbrio havia feito as tempestades torrenciais voltarem a cair e as terras racharem e cuspirem fogo outra vez.
Elnória fez o que pode para reunir seus espíritos mensageiros sob os abalados galhos de Oberon, o primeiro ser vivo por Ela concebido, e salvar-lhes as vidas, que estavam por um fio em meio ao caos.
Valquira convocou Vulcano para juntos controlarem o núcleo incandescente enquanto Henkish e Minel tentavam firmar novamente as partes esfaceladas da terra, Noríbia e Asiren lutavam para conter as tempestades enfurecidas enquanto Aquim regia com toda sua maestria os ventos mais descontrolados do que nunca, antes que eles fizessem das próprias montanhas montes de areia, e Dailong meditava em vão a procura da paz que parecia ter se esvaído de todos os espíritos vivos, até cair desacordado em meio a tempestade de sentimentos caóticos e incertos.
Após muito trabalho árduo, os Criadores haviam conseguido salvar o mundo do colapso. Cansados e atônitos, começaram a questionar o que teria acontecido. Recorreram a Solaris e Ôminus, e estes explicaram que haviam feito tudo o que estava a seu alcance, mas quanto mais eles tentavam equilibrar as forças, mais caótico o mundo se tornava. Somente os Criadores seriam capazes de reverter a situação, e sequer era sabido em que lugar da Vastidão eles se encontravam até então.
Em meio à onda de indagações e questionamentos sobre a Criação, Elnória havia notado algo alarmante: a vida não mais florescia e os Mensageiros da Primavera não conseguiam difundir a essência vital pelo mundo. Dailong sentia medo e insegurança por todos os cantos. Era como se a vida tivesse medo de viver e perder o controle mais uma vez.
Enquanto os deuses procuravam respostas, Auriana viveu seu período mais obscuro, a Era da Estagnação. Nem mesmo uma brisa soprava do mar, ou um fiapo de relva se erguia do solo. Os vulcões esfriaram e as nuvens congelaram no céu. O mundo parou no tempo.
Por mais que meditassem sobre cada farelo de poeira das estrelas usado na Criação ou repassassem cada idéia brilhante gravada na resplandecência dourada do Octaurium, as respostas não eram encontradas.
Os Oito criadores começaram a perder suas esperanças, mas as estrelas mudaram seu destino. Do fundo da Vastidão, três divindades envoltas em brilho prateado surgiram para eles. Elas se intitulavam As Peregrinas Prateadas, três irmãs gêmeas, dotadas de grande sabedoria, que dedicavam sua existência vagando pelo cosmos a procura de quem quer que precisasse e julgassem dignos de seu conhecimento.
Seus nomes eram Ciana, e esta tinha um leve tom azulado em seu brilho, Rupina, com um brilho levemente avermelhado, e Verídia, com brilho esverdeado. As três com longos cabelos lisos, portando em suas mãos espelhos cristalinos arredondados.
Disseram que as estrelas lhes haviam levado rumores de uma nova e belíssima terra, e seguiram o caminho até ali, onde encontraram um mundo à beira do colapso, com seus criadores desesperados por uma solução. Viram o esforço e o carinho das divindades com tudo o que tinham nas mãos, lutando para salvar cada ser vivo, enquanto poderiam simplesmente deixar que tudo se esvaísse e começar do zero quantas vezes quisessem. Com tais atos eles haviam ganhado seu apreço.
Após eras peregrinando pela Vastidão difundindo seu conhecimento, elas finalmente haviam encontrado um lugar em que se sentiriam em casa, e estavam dispostas a contribuir com a riqueza deste mundo. Para isso, traziam a solução ao problema caótico que os Criadores enfrentavam.
Em tese, explicaram as Trigêmeas, Luz e Trevas, Criação e Destruição, são dois lados de uma mesma moeda. Um não pode existir sem o outro. No entanto, isso não significa que o equilíbrio estável seja fruto de sua união absoluta. Sem que haja uma condição especial, o choque das duas forças opostas resulta na sua destruição mutua, e, portanto, na difusão do caos. Embora fabulosa, a idéia dos Oito Irmãos para um mundo equilibrado e dinâmico recaia sobre esta pequena falha. Enquanto eles estiverem presentes para mediar o efeito do choque de forças, a ordem persistiria, mas isso contradizia seu ideal, que era um mundo capaz de se sustentar sem a intervenção divina. A única forma seria acrescentar uma nova essência mediadora, nem Criativa nem Destrutiva, capaz de acomodar e estabilizar as forças e trazer ordem ao mundo.
Dotadas de tal essência da neutralidade, entre os céus e a terra as trigêmeas residiriam, agindo como mediadores entre as forças de Solaris e Ominus. Com seus espelhos circulares, elas trariam luz à escuridão e vice-versa na medida do necessário. Para amortecer o choque da dualidade e encaminhar a Criação à ordem, elas construíram a Malha Matricial. Uma rede de energia que fluiria por tudo o que existe, sensível à presença da matéria bruta e viva, aos efeitos do corpo, mente e espírito. Uma complexa manifestação das Quatro Interações Fundamentais que regem o funcionamento do universo. Por fim, não mais seriam conhecidas como as Peregrinas Prateadas da Vastidão, mas como as Luas Prateadas de Auriana, as Trigêmeas Ciana, Rupina e Verídia.
Uma mistura de perplexidade e gratidão encheu os corações dos Criadores. Enquanto atentamente absorviam os preciosos ensinamentos das deusas, observavam a poderosa trama de energias sendo criada em cada canto do mundo, permeando a matéria bruta e viva, um fluido místico que absorveria o cataclísmico choque das naturezas opostas sob as quais o mundo foi concebido, e finalmente encaminhando a Criação para a ordem estável e dinâmica idealizada desde os tempos do Uníssono.
Terminados os novos trabalhos divinos, os deuses afastaram-se por um instante. Com alegria em seus olhos viram suas expectativas tomando forma. Era o fim da Era da Estagnação. A Vida mais uma vez voltara a florescer, mais do que nunca segura do mundo estável e dinâmico em que se firmava. Os Espíritos Mensageiros da Primavera atearam vôo, voltando a difundir as sementes do amanhã.
Enquanto os primeiros fios de relva se erguiam do solo vazio e os pequenos animais primordiais nadavam pelos vastos oceanos e corriam pelos campos abertos, os deuses apreciavam de longe a beleza de seus trabalhos, os Oito Criadores e as Três Luas Prateadas.
3 comentários:
belissimamente poetico, muito bom, gostei bastante dessa parte quando os criadores tem de serem ensinados, bem interessante, eu chuto q essa nova intervenção deu margem para q a magia exista =X
Cara,
Parabéns... Não lembro se li isso já mas é realmente um conto fantástico, a maneira como tu escreveu ficou ótima!
Já que você me pediu para perguntar coisas que vocês ainda não pensou, o que você me diz da cambada de deuses que vieram atendendo o chamado dos irmãos? Eles num fizeram nada? Quem são esses?
Que bom que gostaram! Fico muito feliz! ^^
Eu tenho um apreço por essa lenda, em especial, porque ela trata justamente das deusas das luas que, como Keno bem observou, são as patronas da magia.
A Malha Matricial seria como mais uma forma de interaçao fundamental para se compor às existentes, descritas pela Teoria Quântica de Campos, de forma que torne a propria existência da vida um campo de energias capaz de interagir com os outros, sendo essa a base para a magia.
Tiago, das lendas essa é a última que eu de fato escrevi. A minha idéia era fazer com que os deuses fossem aparecendo de acordo com a lógica do aumento da complexidade do mundo. Primeiro eu criei o mundo, depois eu corrigi os erros da criaçao, agora tenho que organizar a vida.
A princípio, é esse o papel que os próximos deuses deveriam desempenhar. A começar por Asirel e Asimot, que são os deuses responsáveis pelo fluxo das almas, encarnaçao e desencarnaçao (morte), bem como o julgamento das almas a cerca das condições em que deveriam vir ao mundo e qual destino elas teriam com base em suas atitudes enquanto vivos. Com isso, Auriana passaria a fazer parte do "multiverso" (o conjunto de todos os universos) como mais um degrau no eterno caminho da evolução espiritual, bem como eu acredito que a própria Terra, e a nossa existência, seja.
Após as almas estarem devidamente organizadas, poderíamos tratar da existência dos deuses menores, que serão os patronos dos diversos seres vivos.
Mas, a próxima lenda que pretendo escrever é sobre o surgimento de Asirel e Asimot, só ainda não pensei em uma boa forma deles surgirem (aceito sugestões! XD)
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